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Um Domingo Qualquer #039: Animalia – Capítulo I – Pane

Você lembra do conto que eu publiquei na coluna Um Domingo Qualquer um tempo atrás, chamado Contato de 1º Grau? Então, foi uma ótima experiência escrever este tipo de conteúdo. E a aceitação dos leitores não poderia ter sido melhor. Assim, eu resolvi novamente escrever um conto, mas desta vez um pouco maior. Será uma história mais longa, dividida em capítulos. Eu não sei ainda quantos capítulos terão e o enredo está longe de ser terminado. Portanto, nem eu sei qual é o final. Espero que você gostem e gostaria sinceramente de ler a sua opinião sobre este primeiro capítulo, seja ela boa ou ruim. Bom, sem mais delongas, vamos à história, que ela é longa. :)

Animalia

Capítulo I -Pane

– Ligar!

A pronúncia deste comando acendeu as lâmpadas de plasma localizadas no teto, dando uma tonalidade branca a todo o cômodo. Ao mesmo tempo, uma tela holográfica surgia dentro de uma finíssima moldura, que projetava também um teclado sobre o balcão branco à frente. Enquanto o computador finalizava seu procedimento de inicialização, o jovem rapaz abria as janelas de vidro corrediças, permitindo que a revigorante luz solar invadisse o ambiente, ao mesmo tempo que as lâmpadas se apagavam a identificarem a iluminação natural e a suave brisa matinal acariciava o rosto do rapaz. O canto alegre dos fogo-pagôs e bem-te-vis era um indicador de que o dia seria agradavelmente normal. Mas mal sabia ele dos acontecimentos que estavam prestes a ocorrer.

– Íris, carregar o perfil principal.
– Ok, Omnis. Carregando o perfil principal.

A tela inicial do sistema operacional já brilhava na tela, os poucos programas que iniciavam junto ao sistema principal já estavam terminando o seu carregamento e a playlist de músicas já estava sendo executada num volume relativamente alto, enchendo o ambiente com acordes e vozes do século passado. Após alguns segundos, o rapaz estranhou a demora do computador em finalizar a inicialização. “Que estranho, ele geralmente leva de 2 à 3 segundos para esta tarefa“, pensou ele. Pouco depois, a assistente pessoal Íris, conforme fora batizada por seu “dono”, informa:

– Impossível estabelecer uma conexão à internet, Omnis. O tempo de resposta do servidor remoto expirou.
– Faça outra tentativa. – respondeu ele após pensar um pouco.

Enquanto observava o pequeno círculo indicador de uma nova tentativa de conexão girar na tela holográfica, o rapaz pensava nos motivos que poderiam ter ocasionado aquele problema. Analisou os LEDs de conexão, na borda direita da moldura da tela e constatou que o problema só podia ser com a provedora de internet, já que a sua rede interna estava aparentemente normal.

Quando a Íris retornou com a resposta negativa à nova tentativa de conexão, o jovem pediu que ela ligasse para a empresa provedora do serviço. Então, ele pegou seu fone de ouvido intra-auricular e esperou que um dos funcionários lhe atendessem. Enquanto aguardava, pensou em diminuir o volume da música. Mas lembrou que o próprio sistema fazia isso quando ele estava em ligação. Porém, o fone continuava mudo. Nenhum sinal. Nenhum som. Nenhum único toque. A música visceral de bandas antigas de rock ainda continuava a soar alto das caixas de som. Até que, de repente, sem mais nem menos, a música silencia e o computador se desliga bruscamente, sem cerimônia.

O jovem rapaz apenas olha perplexo, sem esboçar nenhuma reação, para onde antes estava a tela do computador. Lá fora, tudo parecia normal e tranquilo. Apenas o farfalhar das folhas das árvores e o canto dos pássaros quebrava o silêncio daquela estranha manhã.

***

A mãe estava sentada confortavelmente no banco do seu carro autônomo elétrico, enquanto “folheava” uma revista digital de perfumes em seu holopad*. A sua filha mais velha, de apenas 06 anos, estava no banco ao lado, distraída com um joguinho de moda, cujo objetivo era vestir uma linda boneca loira. A modelo 3D estava à sua frente, experimentando os mais diversos modelos de blusas, shorts e sandálias. E no banco de trás se encontrava uma linda criança, com seus olhos arregalados, no auge de seus 10 meses de idade, absorvendo tudo à sua volta.

No painel do automóvel via-se um mapa com uma rota traçada. O carro se dirigiria até a escola da filha mais velha e de lá seguiria para a creche, onde com muito aperto no coração a mãe deixaria seu pequeno filho recém-nascido. Havia tentado a todo custo prorrogar a sua licença, a fim de ficar o máximo de tempo possível com seu filhote. Mas infelizmente não fora possível. E levá-lo ao trabalho era algo inviável, já que seu alto cargo na empresa lhe tomava muito tempo e atenção, recursos estes que teriam que ser divididos com seu filho.

O trânsito até então estava tranquilo, até chegarem à avenida principal, onde o número de automóveis estava significativamente maior. Embora a quantidade de veículos nas ruas estivesse aumentando ano a ano, os congestionamentos não eram mais um grande problema, como outrora, já que os satélites controladores de tráfego sugeriam rotas alternativas aos motoristas. E foi justamente isso que aconteceu agora:

– Sra. Eliane, devido ao acúmulo de veículos na Av. Marcelo Brasil, sua viagem poderá sofrer um atraso de aproximadamente 13 minutos. Gostaria de pegar uma rota alternativa?
– Sim. Quais as opções?

Neste momento, o mapa que antes ocupava apenas uma pequena área no painel ganhou evidência, tornando-se 3D e três rotas se desenharam, cada uma delas com uma cor diferente. A mulher analisou brevemente cada uma delas e fez a sua escolha:

– Rota 2, por favor.
– Ótima escolha, Sra. Eliane. Nesta rota sua viagem poderá ser encurtada em aproximadamente 3 minutos.

Após isso, a mulher voltou a olhar para os diversos perfumes em seu holopad, mas não se agradava em nenhum. Era uma pessoa muito difícil de se contentar. Seu marido sofria todos os anos para lhe dar algum presente que lhe encantasse. Porém, ela havia visto um que combinava com seu companheiro. Um perfume amadeirado, ótimo para sair a noite. Ela tocou no exemplar e uma projeção 3D do frasco saltou à sua frente, com algumas informações ao lado. Ao ler a descrição, viu que a essência também diminuía os riscos de um problema cardíaco, ficou mais tentada ainda a adquiri-lo. O botão escrito “Comprar”, abaixo do frasco, parecia ainda maior e mais destacado. Às vezes ela odiava essas facilidades do mundo moderno.

Há alguns dias havia prometido a si mesma parar de agir por impulso, e isso incluía se controlar nas compras. Cumprindo a promessa, fez o hercúleo esforço de ponderar se tal aquisição era realmente necessária. Olhou fixamente para o frasco vermelho que girava a sua frente, pensou em quantos perfumes o marido já tinha, para as mais diversas ocasiões. “É, talvez isso seja algo supérfluo. Talvez a gente possa passar sem isso“, pensou ela. Mas algo mais forte não a deixava se decidir definitivamente. Algo mais forte não a deixava desligar o holopad e se preparar para deixar sua filha na escola. Até que algo inexplicável desligou o aparelho.

Só após alguns segundos ela percebeu que não foi só o dispositivo portátil que havia desligado. Todo o carro estava… morto! Se dando conta da seriedade da situação, a mulher mais que rapidamente tentou acionar os controles manuais, para interromper a descida sem freio na qual o veículo se encontrava, já que naquele momento o carro percorria uma ladeira. Aquele modelo específico de automóvel, ao estar no modo automático, escondia o volante e os pedais, que eram retráteis, para aumentar o espaço e o conforto. Ao intercambiar para o modo manual, estes itens então ficavam visíveis. Mas naquele momento, nada estava funcionando. E o desespero foi tomando conta dela. Sua filha ao lado já gritava:

– MÃÃÃÃÃÃEEEE!!! MÃÃÃÃÃÃEEEE!!!

Ela viu que o muro no final da rua se aproximava implacavelmente e não teve outra reação senão gritar e chorar antes do iminente impacto.

***

Ele definitivamente estava em um local da mais alta classe. Embora conhecesse pessoas bastante influentes, nunca antes havia frequentado um lugar como esse, com a maior concentração de ricaços por metro quadrado. Embora não fizesse a menor ideia de onde estivesse, não se sentia deslocado. Estava completamente à vontade no local. Caminhou calmamente por entre as pessoas elegantemente vestidas, e uma mulher cujo decote e fartura de seios era exuberante lhe chamou a atenção. Pensou em se aproximar. Mas então olhou para a sua mão esquerda. Um anel moldado em vidro cintilante envolvia seu dedo anelar. Ea melhor manter distância.

Próximo àquela linda mulher, observou um homem de rosto familiar. Fitou sua atenção nele e vasculhou na memória de onde o conhecia. “Sim, da época de colégio!“, relembrou ele. Há muito perdera o contato com seus antigos amigos e colegas de escola. “Mas o quê ele estaria fazendo ali?“, questionou-se o homem. Enquanto refletia, se dirigiu até um enorme balcão touchscreen que estava encostado na parede. Nele, eram exibidos várias opções de drinks e tira-gostos, para livre escolha dos convidados. O homem montou uma bebida leve, pois não queria ficar bêbado num local desconhecido.  Pegou sua taça no final do balcão.

Continuou a esquadrinhar o local em busca de novas faces conhecidas, enquanto saboreava sua bebida. E não demorou a encontrá-las, para seu espanto. Estavam localizados em vários pontos do gigantesco e vistoso salão de festas, como em locais estratégicos. Todos antigos colegas de escola e de faculdade. Mas o mais estranho não era a presença deles. E sim o fato de não falarem uma palavra. Não esboçarem uma reação de surpresa. É como se nunca tivessem convivido antes. Atrás de si havia um elegante elevador, todo trabalhado no vidro. Ele levava até o segundo piso do ambiente. Por algum motivo ele decidiu ir até lá. Enquanto ascendia à parte superior do local, ele podia ver a extensão do salão circular e onde cada conhecido seu se encontrava.

Chegando no topo, se dirigiu até o parapeito, onde havia uma valise de metal sobre uma pequena mesa. Ele a abriu e se deparou com uma pistola-laser. Ele então olhou para o salão abaixo e percebeu que todos os seus conhecidos estavam olhando fixamente para ele, com um semblante sério, como se esperassem um sinal. Ele então balançou a cabeça positivamente e todos eles sacaram de seus ternos caros pistolas-lasers, e sem hesitar começaram a alvejar todos os presentes na festa. Em meio aos gritos desesperados e ao banho de sangue, o homem decidiu ajudar seus companheiros nessa matança irracional. Segurou firmemente a pistola destinada a si, sentindo a empunhadura e o peso do objeto mortal e o apontou para baixo…

Acordou atordoado e sem saber onde estava ao certo. Viu tudo escuro à sua volta e muitas pessoas gritando e chorando desesperadamente. Tentou se levantar do assento mas estava preso pelo cinto. Ele então se lembrou que estava num avião, fazendo o trajeto de volta para casa. Devia ter dormido e tido aquele sonho louco de à pouco. Olhou pela janela da aeronave e em meio à escuridão da noite, percebeu que estavam em queda livre, para encontro direto com o mar. Ele então ouviu o piloto sair da cabine e gritar:

– TODOS EJETEM SUAS POLTRONAS, EJETEM SUAS POLTRONAS!

O homem procurou sua alavanca de emergência, que poderia ser sua única chance de sair dali vivo. O desespero do momento parecia cegar-lhe os sentidos, encurtar o tempo. Mas finalmente ele a encontrou. Estava ali, onde sempre esteve. Ele achava que a alavanca era mais fácil de ser acionada. Tinha de fazer uma força descomunal para movê-la de sua posição. O avião estava cada vez mais próximo do impacto, os gritos ficavam cada vez mais altos e ele não conseguia pensar em mais nada a não ser em sua família.

***

As passadas firmes e rápidas ressoavam no piso de porcelana do grande corredor presidencial. O homem que vestia um conjunto de terno e calça preta exibia um semblante visivelmente irritado e um olhar de causar medo até ao mais valente pugilista. Seus seguranças tentavam acompanhar o passo, com uma certa dificuldade. Chegando ao enorme portão construído com madeira de lei que vedava a entrada de quem não fosse autorizado à Câmara de Reuniões, o homem esperou que as câmeras de reconhecimento biométrico validassem sua entrada. A demora só aumentou ainda mais a sua raiva.

– Senhor Presidente, está quebrado. Lembra-se?

Era a força do hábito. Ele então puxou com dificuldade a pesada porta e mal entrou na sala, gritou com os que já estavam ali presentes:

– ALGUÉM PODE ME EXPLICAR QUE MERDA É ESTA QUE ESTÁ ACONTECENDO?

Continua…

***

E então? Gostou? O que você achou deste primeiro capítulo? Qual merda você acha que está acontecendo? :P Deixe a sua opinião sobre o texto nos comentários.

Tags: Destaques, Um Domingo Qualquer

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